Porte ilegal de arma e o direito de responder o processo em liberdade

Gilson Ely Chaves de Matos – Advogado, mestrando em Aspectos Bioéticos e Jurídicos da Saúde pela Universidad del Museo Social Argentino e especialista em Direito Processual pela Universidade Luterana do Brasil.

Resumo

A persecução penal deve ser desenvolvida dentro da estrita legalidade, pois o processo penal existe antes como garantia do infrator do que propriamente instrumento de punição. A Constituição Federal estabelece que ninguém deve ser considerado culpado antes da sentença condenatória transitada em julgado. Desta forma, toda e qualquer segregação cautelar que fuja a premente necessidade processual das garantias da ordem pública, econômica e da aplicação da lei e, ainda, por conveniência da instrução penal, resume-se na odiosa antecipação de pena. A falta de técnica legislativa tem trazido muitos conflitos entre a lei, a Constituição e a dogmática penal, competindo ao aplicador do direito ter a sensibilidade para buscar nas palavras truncadas do legislador a harmonia do sistema penal.
Palavras-chave: Porte ilegal de arma; inafiançabilidade; liberdade provisória.

Porte ilegal de arma e o direito de responder o processo em liberdade

O direito penal é a ultima ratio no controle social. Somente as situações mais graves devem ser tipificadas, sob pena de incorrer-se na banalização do direito penal, que é um importante instrumento de pacificação social.
Por outro lado, a persecução penal deve obedecer os princípios e garantias jurídico-penais estabelecidas, caso contrário instaura-se um estado de inseguranças, autoritarismo e abusos.
O preço a se pagar pela Justiça num Estado de Direito é a total subsunção das instituições públicas à lei, como garantia do cidadão que tem a certeza de não ser ofendido em sua dignidade humana; o Estado somente pode atuar dentro da mais estrita legalidade, somente está legitimado a buscar a aplicação da lei penal, dentro do devido processo legal.
Por sua vez, a fúria legiferante por vezes acaba por atropelar as Garantias Constitucionais, devendo ser contida, seja através do controle concentrado de constitucionalidade das leis, ou seja, através do controle difuso.
A seu turno, os aplicadores do direito devem estar sempre atentos, não deixando comover-se por paixões ou iludindo-se com emoções, de forma a extraírem da lei seu sentido coerente com o sistema jurídico estabelecido.
Aplicar a lei não é um raciocínio matemático, nem tão pouco um raciocínio biológico, é muito mais que isso, exige-se um pensar humano, um pensar social, é não buscar o individual, certamente é respeitar até mesmo aquele que insiste em não ter respeito pelo direito.
As Garantias Constitucionais estabelecidas são os limites à atuação do Estado, somente a própria Constituição pode excepcionar-se a si mesma, não tendo a legislação ordinária o poder de impor restrições às garantias processuais penais previstas na Carta Constitucional.

O direito de responder ao devido processo legal em liberdade

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer os direitos e garantias individuais e coletivos, instituiu em seu art. 5º, LVII, o princípio da presunção de inocência, e no art. 5º, LXVI que “ninguém será levado à prisão ou nela mantida, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”, garantias processuais penais, que visam a tutela do status libertatis.
Alexandre de Morais, em sua consultada obra Direito Constitucional, preleciona acerca deste princípio Constitucional, in verbis:
[…] há a necessidade do Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal (1).”
Trata-se de opção Constitucional ao modelo garantista, intimamente ligado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, o que é por demais coerente e exigível em um Estado Democrático e Social de Direito.
Lado outro, com o advento da Lei n.º 6.416/77, a prisão em flagrante passou a equivaler-se à prisão preventiva, em termos de manutenção daquela, de tal sorte que, só deve ser mantida a prisão em flagrante se estiverem presentes os requisitos legais autorizadores da prisão preventiva (arts. 311 e 312, do CPP), quais sejam, o fumus boni iuris que constitui a prova da existência da materialidade e indício suficiente da autoria e, o periculum in mora que são: a garantia da ordem pública, a garantia da ordem econômica, para assegurar a aplicação da lei penal, por conveniência da instrução penal.
A ausência dos requisitos legais ensejadores da prisão preventiva impõe a concessão da liberdade provisória, sendo esta com ou sem fiança, a última, modalidade prevista no parágrafo único do artigo 310, do Código de Processo Penal.

Da inafiançabilidade prevista no parágrafo único do art. 14 do Estatuto do Desarmamento

A Lei 10.823/03 (Estatuto do Desarmamento), além de outros absurdos, trouxe a inafiançabilidade do tipo penal previsto em seu art. 14, o qual tem como fundamento à suposta gravidade no perigo abstrato de portar arma ilegalmente.
No entanto, temos que o fato da novel lei impor a inafiançabilidade do porte ilegal de arma, não está vedada a liberdade provisória vinculada prevista no artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal.
Impropriamente o legislador, dentre outros malsinados dispositivos do Estatuto do Desarmamento, no parágrafo único do artigo 14, vedou a prestação de fiança, mas não o da concessão da liberdade provisória, como o fez para os tipos previstos nos arts. 16, 17 e 18, da mesma lei.
princípio constitucional da legalidade, veda uma interpretação extensiva para proibir a liberdade provisória vinculada, pois houvesse restrição à concessão da liberdade provisória vinculada, deveria expressamente ter o legislador inserido tal limitação, como o fez em outros artigos da mesma lei.
A propósito, o Procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, Gilberto Thums, em artigo divulgado no site do Ministério Público do Rio Grande do Sul, com muita propriedade discorre sobre o tema, verbis:
Inovação significativa ocorre no tema sobre fiança e liberdade provisória. Algumas condutas são afiançáveis (arts. 12, 13 e 14) enquanto outras são consideradas apenas inafiançáveis (arts. 14, § único, e 15), o que significa que admitem liberdade provisória com fulcro no art. 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, enquanto outras são definidas como insuscetíveis de liberdade provisória (arts. 16, 17 e 18). Tratamento mais rigoroso do que o dispensado ao homicídio doloso simples, roubo qualificado por lesão gravíssima, etc. Trata-se de fúria legislativa que vai superlotar ainda mais o sistema penitenciário com presos provisórios. Dificilmente essas regras terão aplicação integral. Os magistrados certamente adaptarão essa normas excessivamente gravosas ao sistema processual, tratando os crimes de forma igualitária. […]
Art. 14 – porte ilegal de arma de fogo de uso permitido
Condutas típicas = 13 verbos: portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda, ocultar, ARMA DE FOGO, ACESSÓRIO ou MUNIÇÃO de uso permitido, sem autorização ou em desacordo com norma legal/regulamentar. PENA: reclusão de 2 a 4 anos e multa.
Crime inafiançável, exceto se a arma estiver registrada no nome do agente. Regra que se mostra inconstitucional, porque a fiança está relacionada à natureza do crime. Entendo inócua esta regra, até porque o magistrado poderá conceder liberdade provisória sem fiança, com fundamento no art. 310, § único, do CPP. (2)”. – grifos nosso.
Como se depreende do entendimento esposado pelo Mestre e Procurador de Justiça suso citado, não há vedação na Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) à concessão de liberdade provisória vinculada pela prática in tese do crime descrito no artigo 14.
Aliás, a jurisprudência firmada por nossos Tribunais já assentou que é perfeitamente possível a concessão da liberdade provisória vinculada mesmo nos crimes inafiançáveis, bem como a gravidade do delito não justifica a custódia cautelar, conforme julgados que colacionamos a título ilustrativo in verbis:
“RECURSO CRIME EM SENTIDO ESTRITO – ART. 228, CAPUT, CP – Concessão de liberdade provisória vinculada a termo de condições – Ilegitimidade do requerente por ausência de instrumento de mandato – Cognição prejudicada – Procuração trazida no curso processual face ao art. 37 do CPC em aplicação subsidiária ao CPP – Preenchimento das condições objetivas e subjetivas do parágrafo único do art. 310 do CPP – Ser o delito inafiançável não constitui elemento de não concessão da benesse processual – Recurso crime em sentido estrito improvido.”
PROCESSUAL PENAL – RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS – ROUBO MAJORADO – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO NA DENEGAÇÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA – I – A gravidade do delito, por si só, sem circunstâncias específicas adicionais e sem previsão legal extraordinária, não pode ensejar a continuidade da custódia cautelar. A fundamentação da denegação da liberdade provisória deve ser concreta e vinculada. II – Inexistindo peculiaridade que justifique a segregação antecipada, a par das condições pessoais favoráveis, é de ser concedida a liberdade provisória. Recurso provido.”
“HABEAS CORPUS – PRISÃO EM FLAGRANTE – Pedido de liberdade provisória denegado. Fundamentação insuficiente. Art. 310, parágrafo único, CPP. Constrangimento ilegal caracterizado. A negativa de liberdade provisória reclama, pena de nulidade, fundamentação concreta e vinculada a fatos, não sendo suficiente a alusão à prática do crime pelo qual está o acusado sendo investigado ou a mera suposição, desacompanhada de dados objetivos, de que, posto em liberdade, representa perigo à ordem pública. Ordem concedida.”
No entanto, mesmo que admitíssemos ser possível uma interpretação extensiva do parágrafo único do artigo 14 para tornar a prática do tipo penal insuscetível de liberdade provisória, o que é absurdo e atenta à todas as regras de hermenêutica jurídica, ofendendo ainda o princípio da legalidade, ainda assim algumas análises e correções devem ser feitas.

Inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 14 da Lei 10.826/2003
Conforme já salientava Canotilho: “[…] uma lei restritiva mesmo adequada e necessária pode ser inconstitucional quando adote ‘cargas coativas’ de direitos e garantias ‘desmedidas’, ‘desajustadas’, ‘excessivas’ ou ‘desproporcionais’ em relação aos resultados obtidos (3).
Ao negar a fiança, o dispositivo previsto no parágrafo único do art. 14 do Estatuto do Desarmamento acabou por infringir a Constituição Federal, sendo uma norma desproporcional ao tipo penal a que esta vinculada frente a outros tipos penais muito mais graves.
Da mesma forma, em se admitindo uma interpretação extensiva para vedar-se à liberdade provisória vinculada, estaria ferindo o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, pois que a pena mínima é de 2 anos e a máxima de 4 anos, o que implica ao final do processo em uma pena no regime aberto ou, até mesmo, a substituição da pena restritiva de liberdade.
Desta forma, se estabelecesse a lei a manutenção do infrator preso durante toda uma instrução processual, mesmo quando certo que, ao final do processo, o mesmo, ainda que seja condenado, possa receber uma pena passível de ser cumprida em regime inicial aberto e, até mesmo, de ser substituída por pena restritiva de direitos, seria um contra-senso.
Nesse diapasão, o Mestre em direito processual penal, José Damião Pinheiro Machado Cogan, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, preleciona acerca do direito Constitucional à liberdade provisória, in verbis:
Na atual Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, no Título II, que dispôs sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, estabelece o art. 5º, em seu inciso LXVI que “ninguém será levado à prisão ou nela mantida, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
Essa Constituição, pois, elevou à condição de garantia constitucional plena, ou cláusula pétrea, o direito à liberdade provisória, com ou sem fiança.
Excepcionou de seu cabimento, expressamente, em texto constitucional os seguintes incisos:
“XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”;
“XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”;
“XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Ora, a própria Constituição colocou como cláusula pétrea dos direitos fundamentais o direito à liberdade provisória com ou sem fiança, e excepcionou o racismo, os crimes hediondos, o tráfico de entorpecentes, a tortura, o terrorismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, considerando-os inafiançáveis. Todas as demais hipóteses de delitos previstos no Código Penal ou na legislação extravagante são suscetíveis de fiança ou liberdade provisória, preenchidos os requisitos dos arts. 323, 324 e 350 do Código de Processo Penal (4).”

Prosseguindo em seu artigo, o i. Desembargador, aborda a questão da vedação à liberdade provisória em crimes de perigo abstrato, como o é o de porte ilegal de arma, in verbis:

“Negar-se a liberdade provisória com ou sem fiança a hipóteses plausíveis de cabimento, consiste em odiosa criação legislativa que fere toda garantia constitucional do “due process of law”, obrigando à mantença no cárcere de indiciado ou réu ainda não condenado, criando por expressa disposição legal um prejulgamento negativo do direito à liberdade.
Basta lembrar-se aqui que o mero porte de arma é infração de mera conduta de perigo presumido.
Além disso, nas hipóteses em que a arma é utilizada na prática de infração penal, como no roubo, torna-se o porte delito subsidiário face ao princípio do concurso aparente de normas, só respondendo o roubador pelo delito maior. A situação, então, foge ao bom senso que se esperava na redação da lei: agente que pratica roubo tentado com emprego de arma de fogo tem direito, em tese, à eventual liberdade provisória, não tendo direito à fiança se for preso só com a arma antes de cometer o delito mais grave.
[…]
Tais situações não são mais graves que outras, até por serem delitos de mera conduta, onde a violência está presente e, muitas vezes, a liberdade provisória é concedida.
O princípio da eqüidade deve ser observado, anotando-se que, o fato de se permitir a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, não prescinde da análise dos requisitos subjetivos ou seja, dos méritos pessoais do acusado.
Essa criação legislativa e inconstitucional só seria admissível em países totalitários, onde o direito não é criação harmônica da cultura do homem, mas reflete exclusivamente interesses ideológicos e políticos.
Anota Pontes de Miranda que “sempre fomos, mesmo nos tempos pré-imperiais, essencialmente zelosos da liberdade” ( História e Prática do Habeas Corpus, 2ª edição, Ed. Konfino, RJ, 1951, pág. 129).
Acrescenta o mestre que “errar é humano, coagir é vulgar, abusar do poder é universal e irremediável. A história toda é a prova disso” ( ob. cit., pág.127).
No seu livro menciona o autor decisão judicial que o cita anotando que “Pontes de Miranda escreveu no seu apreciado livro História e Prática do Habeas Corpus, 256: ‘onde há violência à liberdade física e a direito certo, não há de existir mais caso político: há um atentado suscetível de amparo judicial. Só se exclui da alçada da Justiça casos essencialmente discricionários mas se o Executivo e o Legislativo, a pretexto de os exercer, perpetram atos que ultrapassam essas atribuições privativas, em que são soberanos e firam direitos, impõem-se, se é requerida, a intervenção do Judiciário. Não se podem praticar atos arbitrários sob a côr de desempenhos de funções discricionárias”. E ainda doutrinou Rui Barbosa: “A violação de garantias constitucionais, perpetrada à sombra de funções políticas, não é imune à ação dos Tribunais. A estes compete sempre verificar se a atribuição política, invocada pelo excepcionante, abrange nos seus limites a faculdade exercida ( Direito do Amazonas, 163) ” ( ob. cit., págs. 296/297).
Vale aqui lembrar a eterna lição de Rui na “Oração aos Moços”: “De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos”.
Em suma:
1. A liberdade provisória, com ou sem fiança, é cláusula pétrea constitucional de resguardo da liberdade fundamental do cidadão;
2. A própria Constituição estipulou categorias de infrações onde prevê o não cabimento de fiança;
3. A fiança é um direito do acusado, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos no Código de Processo Penal. A liberdade provisória, gênero do qual a fiança é espécie, tem na sua concessão uma faculdade do juízo;
4. A matéria de fiança é exclusivamente processual e está disciplinada no Código de Processo Penal, não podendo ser regulamentado seu cabimento ou não no Código Penal, como menciona a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal no inciso IX, ou, ainda, em legislação extravagante;
5. Os tipos penais criados na Lei nº 10.826/2003 que acrescem vedação à concessão de fiança ou liberdade provisória são inconstitucionais.
É certo que nossos legisladores têm elaborado e aprovado, não raras vezes, leis absurdas e, compete aos aplicadores do direito acertar as arestas das legislações de forma à adequá-las ao sistema garantista adotado por nosso Estado Democrático e Social de Direito.
Aliás, valorosa é a lição de Zaffaroni e Pierangeli, in verbis:
Toda norma jurídica surge de uma decisão política. Toda norma jurídica traduz uma decisão política. A decisão política dá origem à norma jurídica, mas isto não implica que a norma jurídica fique submetida absolutamente à decisão política. Ninguém pode argumentar que a norma não traduz adequadamente a decisão política, para defender que está proibido o que a ordem jurídica não proíbe, mesmo que esta tenha sido a vontade do legislador. A norma é filha da decisão política, leva a sua bagagem genética, mas o cordão umbilical entre a decisão político-penal e a norma, é cortado pelo princípio da legalidade, ao menos no que concerne à extensão punitiva (5).
Ainda, quanto a interpretação extensiva em matéria penal e processual penal, é enfático Zaffaroni e Pierangeli ao prelecionarem, verbis“Em princípio rejeitamos a ‘interpretação extensiva’, se por ela se entende a inclusão de hipóteses punitivas que não são toleradas pelo limite máximo da resistência semântica da letra da lei, porque isso seria analogia (6).”
No entanto, perigosas previsões restritivas e desproporcionais inseridas na lei sem respeito à dogmática penal e aos princípios constitucionais, encontram ainda guarida em parte dos aplicadores do direito, causando lesões irrecuperáveis a cidadãos que são surpreendidos com rigorismos injustificáveis.
Lembremos a advertência de Kant de que a pena não pode ser imoral, não pode tomar o homem como meio, pois, se assim for, mediatiza o apenado e, o mesmo ocorre na hipótese de antecipação de pena, que faz do infrator meio à satisfação da pseudo-segurança trazida por leis de ocasião, como a em comento que tenta atribuir gravidade ao crime de posse de arma, a ponto de merecer prisão cautelar.
Aliás, não é o primeiro tipo penal que tem como fundamento o “perigo abstrato” e, por certo, sua aplicação contraria à Constituição Federal e aos princípios garantistas penais, é fruto do condicionamento criado pelo nosso sistema penal, do qual já advertia-nos Zaffaroni e Pierangeli, verbis:
“Em outro nível, o sistema penal procura compartir essa mentalização com os segmentos de magistrados, Ministério Público e funcionários judiciais. Seleciona-os dentre as classes médias, não muito elevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe média alta que, enquanto as conduz a não criar problemas no trabalho e a não inovar para não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva a identificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprometida) e os isola até da linguagem dos setores criminalizados e fossilizados (pertencentes às classes mais humildes), de maneira a evitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiadamente com a sua dor. Este processo de condicionamento é o que denominamos burocratização do segmento judicial (7).”
No entanto, é de comemorar-se o amadurecimento jurídico pátrio que tem como espelho as decisões do Supremo Tribunal Federal como no exemplo de recente julgamento de Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC 81.057-8) que, muito acertadamente, deu ao tipo penal do porte ilegal de arma interpretação coerente ao sistema jurídico penal, afastando a tipicidade em casos que o infrator não tenha efetivamente à sua disposição o potencial ofensivo causado pela arma de fogo.

Conclusão

A inafiançabilidade prevista no parágrafo único do artigo 14 da Lei 10.826/03 é desproporcional à gravidade do tipo penal a que está vinculada, o que a torna inconstitucional.
Lado outro, o legislador ordinário não vedou a concessão de liberdade provisória no parágrafo único do artigo 14 da Lei 10.826/03, como o fez no artigo 21 da mesma Lei e, repetimos, uma interpretação extensiva ofende a garantia Constitucional do infrator de responder ao processo em liberdade, de ser presumido inocente até trânsito em julgado de decisão condenatória e, por fim, afronta o princípio da legalidade.

Abstract

Illegal transport of weapon and the right to answer the process in freedom
The criminal persecution must inside be developed of the strict legality, therefore the criminal proceeding exists before as guarantee of the infractor of that properly punishment instrument.  The Federal Constitution establishes that nobody must be considered guilty before the transited conviction in judgeship.  Of this form, all and any action for a provisional remedy segregation that the pressing procedural necessity runs away from the guarantees of the public, economic order and of the application of the law and, still, for convenience of the criminal instruction, summarizes in the hateful person penalty anticipation.  The lack of legislative technique has brought many conflicts between the law, the Constitution and the criminal dogma, competing to the applicator of the right having sensitivity to search in the truncated words of the legislator the harmonic of the criminal system.
Keywords : Illegal transport of weapon;  Unbailable;  free on parole.

Referências

1. MORAES, A. Direito Constitucional. 9 ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 126.
2. THUMS, G. Estatuto do desarmamento, Lei nº 10.826 de 22.12.2003, texto publicado em 12.01.2004, atualizado em 18.5.2004, primeiras anotações. Consulta em 25.05.04, em http://www.mp.rs.gov.br.
3. CANOTILHO, JJ. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Almedina, 1987, p. 488.
4. COGAN, JDPM. Da inconstitucionalidade em se negar liberdade provisória, com ou sem fiança, ao infrator do Estatuto do Desarmamento. Consulta em 25.05.04, no sitehttp://www.tacrim.sp.gov.br.
5. ZAFARONI, ER; PIERANGELI, JH. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4 ed., São Paulo: RT, 2002, p. 133.
6. ZAFARONI, ER. ob. cit., p. 176.
7. ZAFARONI, ER. ob. cit., p. 77.

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1 TAPR – RCSE . 0170449-0 – (8421) – Campo Mourão – 2ª C.Crim. – Rel. Juiz Rafael Augusto Cassetari – DJPR 11.10.2001.

2 STJ – RHC 10688 – MG – 5ª T. – Rel. Min. Felix Fischer – DJU 19.03.2001 – p. 121.

3 TJPR – HC Crime 0120616-6 – (14199) – Curitiba – 2ª C.Crim. – Rel. Des. Telmo Cherem – DJPR 01.07.2002.

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