Transação penal e o princípio da discricionariedade regrada

Gilson Ely Chaves de Matos – Advogado, mestrando em Aspectos Bioéticos e Jurídicos da Saúde pela Universidad del Museo Social Argentino e especialista em Direito Processual pela Universidade Luterana do Brasil.

Resumo

A persecução penal tem evoluído de forma a atender os verdadeiros interesses sociais, justificando a grave medida estatal, a qual o Ministério Público é titular, de forma a se demonstrar útil ao próprio direito penal. Neste diapasão, surge o conceito de transação penal no texto da Carta Magna de 1988 e de crime de menor potencial ofensivo nos termos da Lei 9.099/95 alterado pela Lei 10.259/01. Importante que a doutrina e principalmente os Tribunais dêem correta interpretação sobre o conceito dos novos institutos penais criados, principalmente porque sua definição reflete significantemente no próprio processo penal.

Palavras-chave: Transação penal; princípio da oportunidade regrada; direito subjetivo do acusado.

 

Transação penal e o princípio da discricionariedade regrada

O direito penal, a partir do Iluminismo, sofreu grandes transformações, preocupando-se sempre em tornar mais eficiente o sentido da ação penal e a conseqüente punição, mormente com a obra de Cesare Bonessana, Marquês de Beccaria, publicada em 1764, Dei Delitti e delle Pene, que se traduz num verdadeiro marco da filosofia aplicada ao direito penal, reclamando em tempos que a justiça era exercida conforme a conveniência dos poderosos visando sempre e unicamente à satisfação dos mesmos, esta obra deflagra o que podemos chamar de direito penal moderno.
Outros jus filósofos do século das luzes contribuíram para a humanização da pena, a publicidade do processo, a individualização da punição, o direito à defesa e outros princípios basilares hoje aplicados ao direto penal e processual penal, que foram se desdobrando de tempos em tempos em outros princípios que tomaram status Constitucional, sempre exigidos num Estado Democrático de Direito que, aliás, traduz-se na administração das leis preterindo a administração dos homens.
Após o Iluminismo, várias escolas penais surgiram e, conforme o foco de seus estudos, foram prestando sua contribuição para o direito penal. Dentre as que se destacaram temos: a Escola Clássica no séc. XIX; Escola PositivaEscola Crítica por volta de 1891; Escola Moderna AlemãEscola Penal HumanistaEscola Técnico-JurídicaEscola Correcionalista; e o movimento Defesa Social em 1945.
Hoje o processo penal é informado por vários princípios, quais sejam, legalidade ou reserva legal, irretroatividade da lei penal, intervenção mínima, fragmentariedade, culpabilidade, humanidade, adequação social insignificância. Mais do que um direito subjetivo estatal, o processo penal é verdadeira garantia do indivíduo, impondo ao Estado a estrita observância da Lei.
Dentro da evolução dos princípios do direito penal, surge em nosso ordenamento pátrio atual o conceito de crimes de menor potencial ofensivo, que encontra um tratamento diferenciado pelo Estado, que passa a visar primordialmente à composição dos danos e o caráter educativo da intervenção estatal nos conflitos sociais.
Dentro deste aspecto, interessante avaliarmos a natureza da transação penal e da suspensão condicional do processo previstas nos artigos 76 e 89 da Lei 9.099/95, os princípios que a informam frente ao princípio da obrigatoriedade ou legalidade que vigora em nosso ordenamento processual penal.

 

Transação penal

A transação penal em crimes de menor potencial ofensivo está prevista no inc. I, Art. 98, da Constituição Federal de 1988.
Essa inovação constitucional alterou substancialmente o princípio da obrigatoriedade ou legalidade da ação penal, dando margem a uma discricionariedade regrada do Ministério Público, titular da ação penal pública e pública condicionada, surgindo o princípio da oportunidade regrada.
Esse princípio encontra-se claramente presente no caput do art. 76 da Lei 9.099/95 e seus §§.
A propósito, o magistério de Mirabete nos dá conta do surgimento deste novo princípio, verbis:
“A transação é medida de caráter penal e, portanto, a regra que a criou, que favorece o autor do fato nas infrações penais de menor potencial ofensivo, é dotada de retroatividade e deve ser aplicada inclusive aos feitos em andamento por ocasião do início da vigência da Lei n.º 9.099/95.
Essa iniciativa, decorrente do princípio da oportunidade da propositura da ação penal, é hipótese de discricionariedade limitada, ou regrada, ou regulada, cabendo ao Ministério Público a atuação discricionária de fazer a proposta, nos caso em que a lei o permite, de exercitar o direito subjetivo de punir do Estado com a aplicação de pena não privativa de liberdade nas infrações penais de menor potencial ofensivo sem denúncia e instauração de processo. Essa discricionariedade é a atribuição pelo ordenamento jurídico de uma margem de escolha ao Ministério Público, que poderá deixar de exigir a prestação jurisdicional para a concretização do ‘ius puniendi’ do Estado. Trata-se de opção válida por estar adequada à legalidade, no denominado espaço de consenso, vinculado à pequena e média criminalidade, e não ao espaço de conflito, referente à criminalidade grave (1).”
Damásio E. de Jesus, comentando a Lei dos Juizados Especiais Criminais, preleciona, verbis:
“Princípios da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal pública.
Permanecem em nossa legislação como regra. A transação, prevista no dispositivo, com fundamento no princípio da ‘discricionariedade regulada’, constitui exceção à regra, mitigada pelo controle jurisdicional.
Princípio da oportunidade.
Adotou-se o princípio da ‘oportunidade regrada’. O Ministério Público aprecia a conveniência de não ser proposta a ação penal, oferecendo ao autor do fato o imediato encerramento do procedimento pela aceitação de pena menos severa. Esse mister, entretanto, não é absoluto. Não existe, p. ex., em relação a todas as infrações penais. Sujeita-se a regras legais (2).”
Assim, constatando-se que o crime praticado é de menor potencial ofensivo, nos termos da Lei 9.099/95, alterado pela Lei 10.259, de 12 de janeiro de 2001, o Parquet deverá oferecer a transação penal, desde que presente os demais requisitos legais.
A seu turno, divergindo do entendimento de que a Lei 9.099/95 acabou por mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal, o autorizado Promotor de Justiça Afrânio Silva Jardim, sustenta que não vigora nos Juizados Especiais Criminais o princípio da oportunidade regrada ou regulada, vejamos o seu magistério, in verbis:
“Não aceitamos dizer que nos Juizados Especiais Criminais vigora o princípio da discricionariedade regulada ou controlada.
[…]
Destarte, ‘presentes os requisitos’ do §2º do art. 76, poderá o Ministério Público exercer a ação penal de dois modos: formulando a proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, após atribuir ao réu a autoria ou participação de uma determinada infração penal, ou apresentar a denúncia oral. Nas duas hipóteses, estará o Ministério Público manifestando em juízo uma pretensão punitiva estatal. Assim, a discricionariedade que existe está estrita apenas entre exercer um tipo de ação penal ou outro. Faltando um daqueles requisitos, não cabe proposta e o Ministério Público terá o dever de oferecer a denúncia, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal (3)”.
Com a devida vênia à opinião do combatido Promotor e estudioso Professor acima colacionada, ousamos discordar e acompanhamos o entendimento que vem da doutrina majoritária e jurisprudência firmada ao largo da vigência da lei especial, pois, esforçando-se para sustentar a inviolabilidade do princípio da obrigatoriedade ou legalidade da ação penal, o Prof. Afrânio Silva Jardim elabora uma interpretação sistemática do ordenamento processual penal vigente; acreditamos que não deve a Lei 9.099/95 ser interpretada à luz do ordenamento processual penal vigente à época de seu surgimento, mas sim à luz da Constituição Federal de 1988, pois é a Carta Magna que prevê a transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo, ademais, num Estado Democrático de Direito, conforme próprio ensinamento do ilustre Promotor, o direito processual não vige apenas para garantir o direito subjetivo do Estado na persecução penal, mas, ainda, para ser verdadeiro óbice ao desejo de Justiça do Estado, pois, conforme Mirabete, “melhor absolver um culpado do que condenar um inocente (1).
Lado outro, o Prof. Afrânio da Silva Jardim, ainda, reconhece que em relação ao sursis processual previsto no artigo 89, da Lei 9099/95, houve aí a mitigação do princípio da indisponibilidade da ação penal (4).
Desta forma, verifica-se que o princípio da oportunidade regrada, com o advento da Constituição de 1988 e da Lei 9.099/95, veio mitigar o princípio da obrigatoriedade ou indisponibilidade da ação penal pública e pública condicionada.
A propósito, esta é a conclusão do XVI Congresso do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, verbis:
“Exceção ao princípio da indisponibilidade – 1. O princípio da obrigatoriedade convive harmonicamente com o procedimento do Juizado Especial e com o instituto da suspensão do processo; já o princípio da indisponibilidade não é respeitado na fase preliminar e no procedimento sumaríssimo (se ocorrer a conciliação). Na suspensão o referido princípio é atendido (5)”.

Transação Penal – Direito Subjetivo do Acusado
Sendo a transação penal informada pelo princípio da oportunidade regrada, temos que não pode o Promotor deixar de oferecer a proposta de transação, ou até mesmo a suspensão condicional do processo a seu alvedrio.
Trata-se de direito subjetivo do acusado e no caso de entender o Parquet não ser cabível a apresentação da proposta, deverá justificar fundamentadamente as razões que o levaram a concluir pela não oferta.
Nesse diapasão, já se manifestou a Confederação Nacional do Ministério Público: “Exigência de justificativa na não-propositura de proposta – 5. A manifestação do Promotor de Justiça, no sentido de não propor a transação penal, deve ser sempre fundamentada (5)”.
Também a jurisprudência já contemplou a obrigatoriedade da proposta ou sua não proposição justificadamente, in verbis:
“Inadimissibilidade de oferecimento da denúncia – A aplicação imediata da pena impede a instauração de ação penal e, como esta somente se instaura com o recebimento da denúncia, não há como recebê-la antes de se fazer a proposta prevista no art. 76 da Lei n.º 9.099/95 ao infrator”.

Outra não é a posição firmada na melhor doutrina, conforme valorosa lição de Júlio Fabbrini Mirabete, verbis:
“Ressalte-se que, sendo uma faculdade ‘limitada’ concedida ao titular da ação penal, a decisão de não apresentar a proposta de transação deve ser justificada pelo Ministério Público, em obediência ao que se dispõe no art. 129, VIII, última parte, da Constituição Federal, art. 43, III, da Lei n.º 8.825/93 e art. 169, VII, da Lei Complementar n.º 734/93. Evita-se, com a necessidade de ser expressa a motivação, que se negue a oferecer, sistemática ou indiscriminadamente, a proposta (5)”.
Em que pese o entendimento do Professor Mirabete acerca de não se tratar a transação penal de um direito público subjetivo do autor do fato, de modo a possibilitar que seja apresentada contra a vontade do Ministério Público, verificamos que pelos elementos colhidos no bojo de sua própria obra Juizados Especiais Criminais e acima reproduzida, bem como o que podemos aferir da Conclusão da Confederação Nacional do Ministério Público e recentes jurisprudências de nossos Tribunais pátrios, tem-se que trata-se sim de um direito público subjetivo do autor do fato in tese criminoso, pois uma vez não oferecida a proposta pelo Parquet de forma fundamentada, o que não é o caso de não concordância pelo Magistrado com as razões ofertadas, deve o Magistrado remeter os Autos ao Procurador Geral de Justiça, em analogia ao artigo 28 do Código de Processo Penal, apesar de alguns entendimentos sustentarem que deve ele próprio oferecer a proposta, em respeito aos direitos Constitucionais da pessoa humana, mormente o princípio da legalidade, posição a qual não coadunamos.
Melhor seria, na verdade, que se aplicasse a norma prevista para a ação civil pública, remetendo os autos ao Conselho Superior do Ministério Público, mas tal providência somente seria possível com alteração da Lei 9.099/95, vez que de caráter processual penal enquanto àquela de caráter processual civil.
Seja como for, a Constituição de 1988 acabou por criar um direito subjetivo ao acusado, prevendo em seu bojo a transação penal, além do princípio da inocência e outros que acabam por estabelecer garantias contra a atuação enérgica estatal. Ademais, o princípio maior da legalidade que vincula toda a persecução penal, como também o próprio objetivo da Lei 9.099/95 são óbices à negativa injustificada do oferecimento da transação penal ao acusado, o que acaba por estabelecer verdadeiro direito subjetivo deste último.
A cerca do direito subjetivo do autor da infração, nossos tribunais assim já se manifestaram, in verbis:
“Constatada a incidência da Lei n.º 9.099/95, não fica ao arbítrio do representante do MP oferecer ou não as propostas alternativas à condenação previstas nos arts. 76 e 89 daquela lei. Em que pese a equivocada redação desses dispositivos, o vocábulo ‘poderá’, tal como na exegese já pacífica do art. 77 do CP, deve ser entendido como alusivos às hipóteses em que o acusado não satisfaça a todos os requisitos legais para usufruir do benefício. Observe-se que todos os benefícios previstos na Lei n.º 9.099/95 constituem direitos públicos subjetivos do acusado – ainda que o tempo verbal em que alguns foram formulados esteja eventualmente no condicional – ensejando a sua denegação, presentes os requisitos autorizadores, a impetração de ‘habeas corpus’ ou mandado de segurança para a sua imediata restauração. Não é dado, assim, ao representante do MP propor ou não, ao seu alvedrio, acordo com o acusado visando a aplicação da pena restritiva de direito ou multa (art. 76) ou a suspensão do processo (art. 89). Presentes todos os pressupostos legais, não há como recusar o acordo; por outro lado, verificada a ausência de algum desses requisitos, cumpre ao MP, ao oferecer a denúncia, submeter à decisão do juiz suas razões para não apresentar a proposta. Ordem concedida para que se ofereça à paciente proposta de suspensão do processo, nos termos do art. 89 da Lei n.º 9.099/95”.

 

Conclusão

Entendemos, resguardado o devido respeito à opinião de conceituados juristas, que a transação penal, que instaurou o princípio da oportunidade regrada mitigando, por sua vez, o da obrigatoriedade, acabou por criar um direito subjetivo do infrator, o beneficiário imediato da lei processual em questão.
A recusa injustificada da proposta ou até mesmo a simples omissão do Ministério Público, lesa sem sombra de dúvidas o Direito Constitucional do acusado.
A evolução do direito penal, não nos permite outra interpretação, pensar diferente não é só infrentar a própria razão dos princípios informadores do direito penal, mas também fechar os olhos para as instituições criadas pelo crime nas dependências de nossas casas prisionais sempre superlotadas.
Contudo, o mais grave é permitirmos que um benefício legal seja subtraído do cidadão por omissão ou entendimento pessoal do Promotor de Justiça, o que ofende, de plano, a própria dignidade da pessoa humana.
Desta forma, concluímos ser a transação penal e o sursis processual previstos na Lei 9.099/95, direito subjetivo do acusado.

 

Abstract

Penal transaction and moderate principles of opportunities
The penal persecution has evoluded in a way to atend the true social interests, ustifying a grave nationalized step, wich the Public Ministry is the titular, in a way to self-demonstrate usefulness to the penal rights. In this standard, creates the concept of penal transaction in the Magna Carta´s text in 1988 and a crime of less ofensive potential in the Law terms 9.099/95 alterating the Law 10.259/01. It´s important that the doctrine and especially the tribunals gives the correct interpretation about the concept of new penal intitutes created, especially because the defition significantly reflects in the very penal process.
Keywords: Penal transaction; moderate principles of
opportunities; subjective rights of the guilty.

 

Referências

1. MIRABETE, JF. Juizados especiais criminais: comentários, jurisprudência, legislação. 3 ed., São Paulo: Atlas, 1998, p. 84.
2. JESUS, DE. Lei dos juizados especiais criminais anotada. 4 ed., São Paulo: Saraiva, 1997,  p. 76.
3. JARDIM, AS. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 4 ed., Rio de Janeiro: Forense: 2001, p. 107 e 108.
4. JARDIM, AS. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 4 ed., Rio de Janeiro: Forense: 2001, p. 108.
5. MIRABETE, JF. ob. cit., p. 85.

 

Contato

Gilson Ely Chaves de Matos − [email protected]

1 É oportuna a leitura dos artigos O novo conceito de infração de menor potencial ofensivo, da autoria do Dr. Victor Eduardo Rios Gonçalves e Breves notas acerca do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo frente à Lei 10.259, de 12.01.2001, de autoria do Dr. Fábio Ramazzini Bechara, ambos disponíveis no site www.damasio.com.br.

2 TACRSP – RJDTACRIM 32/475.

3 TACRSP – RT 733/575. No mesmo sentido, TACRSP: RJDTACRIM 31/316-7, 199, 32/409.

Vamos conversar?

Telefone

(69) 3322-9446
(69) 98437-4680
(69) 98416-0540

/

/

Faça uma visita

Av. Benno Luiz Graebin, 3910, Jardim América, Vilhena-RO - Cep 76980-714