Gilson Ely Chaves de Matos – Advogado, mestrando em Aspectos Bioéticos e Jurídicos da Saúde pela Universidad del Museo Social Argentino e especialista em Direito Processual pela Universidade Luterana do Brasil.
Resumo
A medicina é uma ciência que tem como um de seus aspectos o caráter relacional entre médico-paciente, o que tem promovido duras críticas pelo aspecto paternalista fruto de equivocada interpretação do modelo hipocrático. Essa característica paternalista é incompatível com os escopos modernos da bioética informada pelos princípios da beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça. Nos Estados modernos a dignidade humana foi erigida como princípio basilar, impondo respeito à autodeterminação do indivíduo que age conforme um projeto pessoal de vida informado por questões filosóficas, religiosas e sociais. Assim, a bioética busca estabelecer novos parâmetros relacionais entre médico-paciente, prestigiando sempre a autonomia da pessoa humana, exigindo-se para o atuar médico condutas positivas de informação ao paciente de todo o necessário para que consinta no tratamento mais adequado a seu projeto pessoal, sem, contudo, retirar do médico seu importante papel social.
Palavras-chave: Bioética. Autonomia. Consentimento informado.
Aspectos jurídicos e bioéticos do consentimento informado na prática médica
A bioética remonta aos fins da década de 1960, quando se começou a discutir com veemência as questões morais implícitas, principalmente, aos experimentos na área médica. A partir de então, foi criada nos Estados Unidos da América (EUA) a National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, responsável pela publicação, em 1978, do Belmont Report, relatório que acabou por influenciar decisivamente a ética médica, estabelecendo os princípios do respeito pelas pessoas, beneficência e justiça como pilares da atuação médica.
O princípio da beneficência traduz-se no atuar médico sempre em busca do fazer o bem ao paciente, avaliando os riscos e sopesando o mal causado em busca de um bem incerto ou menor. Daí, também, a consagração atual do princípio da não-maleficência, que é o não causar o mal, maximizando os benefícios e minimizando os riscos possíveis. Fabriz aduz acerca desses princípios e sua relação: o princípio da beneficência demonstra ser, em seus imperativos, de extrema importância na delimitação de padrões de conduta. Fundado nas máximas no nocere e bonum facere, engloba um outro princípio, o da não-maleficência (primum non nocere), o de não impingir a alguém qualquer dano. Tal princípio põe em pauta uma série de indicativos que devem ser levados em consideração nas práticas ligadas à biociência. O princípio da beneficência sugere, em sentido mais amplo, que seria bom beneficiar as pessoas que têm necessidade; seria bom, por exemplo, que os médicos proporcionassem assistência à saúde de pacientes indigentes. No entanto, essas questões não são de simples aplicação, visto que a medicina, em sentido estrito, constitui-se em uma profissão, e, como tal, devem levar-se em conta as várias implicações que daí advêm 1.
O princípio do respeito às pessoas traduz-se no conhecido princípio da autonomia, que reconhece aos indivíduos a capacidade para conduzir sua vida, cuidar de sua saúde, reconhecendo, ainda, que essa autonomia pode estar por vários aspectos diminuída, merecendo proteção especial. Conforme o Belmont Report, pessoa autônoma é o indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir conforme as suas próprias decisões. A autonomia está intrinsecamente ligada à própria dignidade da pessoa humana, relacionada ao projeto de vida e às decorrentes exigências de respeito às suas convicções filosóficas, religiosas, morais e sociais. A ofensa a esse plexo de convicções não se justifica nem mesmo para um atuar pseudobenéfico, uma vez que não só a saúde física deve ser almejada, mas também e principalmente a psíquica.
Daí que o princípio da autonomia importa, na medicina, a obrigatoriedade de o médico estabelecer prévia comunicação com o paciente, informando-lhe adequadamente todas as implicações acerca da doença, desde tratamentos possíveis até os riscos inerentes aos procedimentos adotados, para então conseguir o seu consentimento ao tratamento elegido e concordante ao seu projeto de vida, preservando suas convicções e dignidade.
Já o princípio da justiça exige um atuar governamental em distribuir de forma equânime as conquistas médicas alcançadas no campo das pesquisas e, também, os serviços de saúde. Traduz-se na máxima de tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade. Para Baracho, esse princípio é entendido como a imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios e, ainda, estando vinculado ao mesmo os critérios éticos, na consagração e distribuição dos recursos à saúde 2.
A consagração de princípios basilares na bioética em substituição a regras positivadas em ordenamentos jurídicos diversos é de suma importância, haja vista que os princípios têm caráter normativo fundamental e axiomático, enquanto que as regras são por demais restritivas e limitadas para exercer satisfatoriamente seu escopo em campo tão dinâmico e mutável como a bioética.
Conforme preleciona Hertel acerca da diferença entre princípios e regras, ambos são classificados como espécies de normas, mas os princípios têm conteúdo axiológico mais abrangente e, ainda que em aparente conflito com outro princípio, não perdem o seu campo de aplicação: não se confundem os princípios, as regras e as normas. Na verdade, princípios e regras são espécies de normas. A distinção entre regra e princípios, portanto, é uma distinção entre dois tipos de normas. Os princípios são normas de grau de generalidade alto e as regras são normas de grau relativamente baixo de generalidade. Os princípios estão mais próximos da noção de justiça, enquanto as regras podem ter um conteúdo apenas formal. No conflito entre regras, uma regra exclui a outra. Os princípios, de outro lado, não se excluem. Na verdade, apenas preponderam uns em relação aos outros em determinados casos. As regras ou são válidas ou não; já os princípios, ao contrário, podem ser ponderados 3.
A importância em reconhecer valores humanos supremos nos princípios delineados pelo Belmont Report para a bioética pode ser verificada nas mais diversas áreas em que ela se faz presente, na pesquisa científica ou na prática clínica médica. Como nessas áreas não é raro o surgimento de conflitos éticos a serem enfrentados, os princípios informadores da bioética podem orientar sobre o melhor caminho a ser seguido, para aquele caso e naquele momento. Se ao invés dos princípios basilares informadores houvessem regras positivadas em diversos ordenamentos, certamente esses casos não permitiram uma discussão ética e, portanto, não seria assegurada qualquer garantia de justiça em sua resolução.
A partir da consolidação dos princípios bioéticos passa-se a conceituar a ação médica de forma diferente, afastando-a cada vez mais de um paternalismo que impunha a dependência injustificada do paciente em relação ao médico. A relação paternalista entre médico e paciente pode ser caracterizada, em essência, pelo fato de o médico não conceder participación al paciente en la toma de decisiones, la posibilidad de que como consecuencia de esto se le de al paciente poca o ninguna información sobre lo que se está haciendo o se hará en el intento de curarlo, y el por qué se hace cada cosa o brindarle una información parcial donde sólo se habla de los posibles beneficios pero no de los riesgos, no es parte esencial de la relación paternalista; pudieran superarse todos estos defectos en el manejo de la información pero si no se le brinda al paciente la posibilidad de participar en la toma de decisiones sobre lo que se piensa hacer continuaría de hecho siendo paternalista esta relación 4.
Assim, é imperativo o respeito pleno aos princípios bioéticos consagrados para, verdadeiramente, exigir uma atuação médica autorizada e informada, interagindo paciente e médico na busca de soluções éticas e dignas em cada caso específico, de forma a contemplar a beneficência e a evitar a maleficência, além de assegurar uma distribuição justa dos recursos médicos, pois somente com a informação é o individuo capaz de buscar a efetividade do cumprimento dos direitos e garantias que as constituições dos Estados modernos lhes asseguram.
Consentimento informado
Como conseqüência da consolidação dos princípios basilares da bioética e, dentre eles, a autonomia, definida como respeito às pessoas, desenvolveu-se a necessidade no atuar médico do dever de informar ao paciente e de obter seu consentimento para legitimar a intervenção necessária. A exigência do consentimento informado sintetizou o respeito à autonomia do paciente, sendo amplamente reconhecido nos códigos de ética médica de vários países e, até mesmo, em legislações específicas, mormente quando se identifica a diminuição dessa autonomia por motivos diversos, etários ou decorrentes do desenvolvimento da própria doença.
O dever de informar significa que o médico necessita estabelecer um relacionamento aberto ao diálogo com seu paciente, informando-o da gravidade da doença, dos exames necessários à compreensão de sua extensão ou grau de avanço, os diversos tratamentos possíveis e o desenvolvimento de cada um (o quanto é invasivo e doloroso cada tratamento), os benefícios possivelmente alcançados, bem como os riscos dos procedimentos. Berstein define os principais elementos que devem ser informados para a obtenção do consentimento: a) Naturaleza de la decisión o del procedimiento; b) Alternativas razonables a la intervención propuesta; c) Riesgos, beneficios e incertidumbres más importantes relacionados con cada alternativa; d) Evaluación de la capacidad de entendimiento del paciente; e) Aceptación de la intervención por parte del paciente 5.
Por sua vez, a par de todas as informações necessárias, tem o paciente o direito de confrontar os tratamentos oferecidos com seus próprios valores decorrentes do projeto de vida traçado, para então contrabalançar os benefícios e riscos inerentes a cada um e, então, consentir ou não com o tratamento. No entanto, o necessário consentimento informado não poderá nunca se resumir em um documento preestabelecido ou elaborado pelo hospital com informações gerais e solicitação de autorização de tratamentos. Esses documentos não são aceitos pela doutrina e jurisprudência consagradas como juridicamente válidas para reconhecer o respeito à autonomia do paciente. Sobre isso preleciona Porro: el consentimiento informado no es una acción aislada destinada a lograr que el paciente firme un documento autorizando al equipo de salud a realizar tal o más cual tratamiento o investigación. Es un proceso donde todas las acciones para la salud en cualquiera de los tres niveles de prevención debe ser explicado. Cada examen complementario o fase del tratamiento, sobre todo los más invasivos y dolorosos, deben ser informados con los beneficios que aportaría y los riesgos que conlleva 4.
No mesmo sentido, Duque ensina que o consentimento informado é mais um processo de comunicação que ato formal de caráter meramente documental: es un proceso gradual, no un papel ni un documento. Por esta razón, entendemos que consentimiento informado es más un intento dialogado para superar distancias y lograr aproximaciones empáticas más allá de un formulismo legal, el cual, en ciertas circunstancias y formalidades, puede incluso congelar e inhibir el ambiente de confianza requerido para que la relación médico-paciente sea exitosa. Según sea su forma de redacción y contenido, el documento puede, incluso, colocar al profesional en el ejercicio de una Medicina a la defensiva, la cual es contraria a los intereses del paciente y de la sociedad. Actitud defensiva que puede ser percibida por el paciente como una actuación tendiente a proteger contra la irresponsabilidad al mismo profesional de la salud, lo cual aminora la confianza del paciente y le coloca en expectativa para no dejar perder el menor atisbo de error en la actuación del profesional 6. Na verdade, não se exige que o consentimento do paciente seja expresso, sendo possível consentir de toda e qualquer forma válida e verificável, desde que tenha sido informado eficazmente de todas as implicações médicas.
Outra questão muito importante acerca da validade do consentimento é que tenha sido assegurado ao paciente o exercício pleno de sua liberdade em avaliar os diversos aspectos sem sofrer qualquer tipo de coação. Essa expressão plena e livre de qualquer espécie de coação envolve grande plexo de questões, uma vez que não se pode conceber, hoje, um indivíduo que desfrute tal plenitude de liberdade e, portanto, que o coloque alheio às coações sociais próprias da construção do modelo familiar e capitalista. Dizer que a família não influenciará na decisão a ser tomada pelo paciente, que não exercerá certa coação psicológica para que tome determinada decisão e consinta em um ou outro tratamento, é descaracterizar o indivíduo como ser sociável e inserido no tecido social. Portanto, essa espécie natural de interferência não deve ser considerada como apta a reduzir-lhe o discernimento e autonomia, ao contrário, compõe ela o próprio projeto de vida do indivíduo, seus valores, concepções e crenças. No que concerne às interferências havidas na livre capacidade de decidir do paciente, em razão do sofrimento ou mesmo como seqüela do avanço da doença, deverão ser apreciadas caso a caso, prestigiando-se sempre ao máximo a autonomia do indivíduo como corolário de sua própria dignidade como pessoa humana.
No entanto, o mesmo não se pode dizer da influência ou indução a determinadas decisões pelo médico que, devido à autoridade conferida por seu saber e posição, deve abster-se, ao máximo, em conduzir as decisões do paciente, auxiliando-o apenas com todas as informações necessárias. Tal procedimento ainda é por demais custoso para os médicos, formados em uma cultura paternalista, há muito instalada no meio profissional, que precisa ser superada. Não se quer com isso diminuir a importância das decisões médicas advindas do estudo e atuar ético, ao contrário, busca-se uma construção de decisões interativas entre médico-paciente, em respeito mútuo entre profissional e paciente. Muitas vezes a atuação implica em decisões urgentes, não proporcionando consentimento ou mesmo informação em momentos que exigem decisões rápidas, pois o não atuar implicará conseqüências graves para a saúde e a vida do paciente. No entanto, passado o momento crítico e restabelecida a autonomia do paciente, esse deve ser informado de tudo para consentir na seqüência do tratamento.
Outra questão de graves implicações é o reconhecimento da diminuição da autonomia por razão etária ou incapacidade do paciente em compreender plenamente o tratamento e suas implicações. Nesses casos as informações devem ser levadas ao conhecimento do responsável legal pelo paciente, o qual deverá consentir no tratamento, respondendo por toda e qualquer conseqüência das escolhas.
A exigência do consentimento informado tem sofrido severas críticas por parte da classe médica, que entende tal dever como uma restrição do atuar do profissional médico que detém, certamente, o conhecimento técnico e prático necessário em buscar a beneficência em prol do paciente. Contudo, é de se asseverar que não só de doenças físicas padece o homem, não raro as doenças se desenvolvem em decorrência de um mal psíquico e não reconhecer a autonomia, o autogoverno dos indivíduos, é impor-lhes muitas vezes um mal na consciência, em suas convicções, o que implica certamente em maleficência.
A partir do reconhecimento do consentimento informado como respeito à autonomia, os bioeticistas passaram a desenvolver seu alcance e interpretação, surgindo na doutrina várias vertentes do consentimento.
Consentimento livre e esclarecido
A partir da consolidação da autonomia como um dos princípios reitores da bioética e do consentimento informado como corolário, passaram a ser desenvolvidas regras para atender essas normas-princípio, surgindo, a partir de então, novas vertentes da concepção do consentimento informado como maneiras capazes de plenamente atender ao princípio da autonomia.
Dentre essas, o consentimento livre e esclarecido, entendido como mais eficaz ao alcance pleno do respeito à autonomia do paciente. Os que defendem tal concepção assinalamprimeiramente que o ato de consentir tem que ser qualificado, ou seja, livre de qualquer ingerência externa capaz de viciar a decisão do paciente, o que, como visto, também deve ocorrer no consentimento informado.
Os defensores desse consentimentoqualificado entendem que sua validade não se atém à liberdade de escolha frente à informação e exigem que essa informação seja um esclarecimento pleno sobre todas as implicações inerentes ao tratamento. Assim, o pleno respeito à autonomiado paciente somente estaria contemplado se e quando o médico estabelecer canal de comunicação claro e completo com o mesmo, de forma a não apenas informar-lhe do mal que o aflige, mas também dos exames necessários, tratamentos possíveis e conseqüências advindas de todo o plano de ação médica. A compreensão sobre a necessidade de aprofundar as informações, propiciando, de fato, o esclarecimento, advém da interpretação das recomendações da Declaração de Helsinque, que em seu artigo 22 dispõe: em toda pesquisa em seres humanos, cada indivíduo deve receber informação adequada sobre os objetivos, métodos, fontes de financiamento, possíveis conflitos de interesses, vinculação institucional do investigador, benefícios calculados, riscos previsíveis e danos derivados da pesquisa. A pessoa deve ser informada do direito de participar ou não da pesquisa e de retirar seu consentimento em qualquer momento, sem se expor a represálias. Depois de assegurar-se de que o indivíduo entendeu a informação, o médico deve obter então, preferivelmente por escrito, o consentimento esclarecido e voluntário do indivíduo. Se o consentimento não pode ser obtido por escrito, o processo para obtê-lo deve ser documentado formalmente mediante testemunhas.
A Declaração de Helsinque explicita ainda que ao obter o consentimento esclarecido para o projeto de pesquisa, o médico deve ter especial cuidado quando o indivíduo está vinculado com ele por uma relação de dependência ou se consente sob pressão. Neste caso, o consentimento esclarecido deve ser obtido por um médico bem informado que não participe da pesquisa e que nada tenha a ver com aquela relação.
Como se depreende dessas regras, o consentimento aqui é pré-qualificado pelo esclarecimento amplo, em linguagem acessível ao paciente. Outras normatizações posteriores incorporaram essa pré-qualificação como requisito do consentimento válido. No Brasil, o capítulo IV da Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que trata do consentimento livre e esclarecido, define que o respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa.
Embora ambos os documentos se refiram especificamente à área de pesquisa médica, parece claro que tais recomendações podem ser (e foram) transpostas para a prática clínica. Além dessas, também existem normatizações relativas ao tratamento que conduzem a uma interpretação acerca da exigibilidade de amplo esclarecimento ao paciente. Pode-se citar o Convenio de Asturias de Bioética7, que, dentre outras recomendações, estabelece como regra geral em seu artigo 5º: uma intervenção no campo da saúde só pode ser realizada depois de a pessoa ter dado seu consentimento livre e informado para tal. O texto salienta que antes de uma intervenção a pessoa deve receber informações apropriadas acerca do propósito e natureza do procedimento, bem como seus riscos. No artigo 9º considera também que quando o paciente não pode expressar sua vontade no momento da intervenção, seus desejos previamente expressos, concernentes a intervenções médicas, devem ser levados em conta.
No mesmo sentido de se exigir que o médico informe suficientemente (esclareça) o paciente acerca de todos os aspectos que envolvam a intervenção médica, estabelecem as regras contidas na Declaração Universal Sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos 8 e na Declaração Ibero-Latinoamericana sobre Ética e Genética 9.
O Código de Ética Médica vigente no Brasil traz um capítulo exclusivo sobre direitos humanos, no qual a primeira regra discorre sobre a necessidade do consentimento esclarecido. Segundo esse documento, é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida (Código de Ética Médica, art. 46).
Nos artigos 56, 67 e 68 do Capítulo V, que trata da relação do médico com pacientes e familiares, também é consagrado o princípio da autonomia, considerando que é vedado ao médico, respectivamente: desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida; desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre o método contraceptivo ou conceptivo, devendo o médico sempre esclarecer sobre a indicação, a segurança, a reversibilidade e o risco de cada método; praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o procedimento.
Essa visão moderna e em plena consonância com os princípios da beneficência, não-maleficência, autonomia e justiça presentes no Código de Ética Médica demonstra a preocupação dessa classe profissional com o respeito aos direitos humanos consagrados universalmente.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem dado plena aplicação às regras desse código, com especial preocupação ao respeito à autonomiado paciente e a necessidade do consentimento informado. Algumas decisões disciplinares em recurso de apelação de processo ético-profissional reforçam essa afirmação. Nos termos do voto do conselheiro relator esses processos definem que o médico deve respeitar a autonomia do paciente, não devendo tomar decisões pelo paciente a não ser em risco iminente de vida 10 e que; comete falta ética o médico que realiza procedimento não autorizado pelo paciente desobedecendo ao princípio da autonomia, ainda que movido por boas intenções 11.
Como se depreende do entendimento esposado nos julgados retrocolacionados, está o princípio da autonomia devidamente amparado no Código de Ética Médica brasileiro e o Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina tem primado pela aplicação das regras deontológicas. Também a doutrina contempla essa vertente do consentimento informado, enfatizando a necessidade de prestigiar sempre e com a maior amplitude possível o princípio da autonomia, o que justificaria exigir mais que simples informação do médico, ou seja, esclarecimento. Nesse sentido, conclui Magno: 1) O paciente tem que ser capaz para dar o seu consentimento, não só sob o ponto de vista do Código Civil, mas que tenha capacidade de pensar e decidir, capacidade de entendimento, de compreensão ampla de seu estado de saúde e do esclarecimento que lhe será proporcionado pelo médico, bem como de poder avaliar as alternativas que lhe serão apresentadas e de decidir sobre elas. Modernamente, a tendência é exigir que o paciente tenha “alta capacidade para decidir”, nos casos de recusa de tratamento ou nos casos que envolvam grandes riscos para o paciente. Inexistindo capacidade, a família, ou o responsável legal, é quem deve ser informada e esclarecida e decidir pelo paciente; 2) O paciente deve ser amplamente informado e esclarecido pelo médico sobre seu estado de saúde, as opções de tratamento, os riscos e benefícios, de modo que o mesmo possa decidir conscientemente o que será melhor para ele. Para que isso seja possível, deve ser repassado ao paciente o maior número de informações possíveis, em linguagem acessível ao mesmo e, logo após, indagar se o mesmo compreendeu tudo que lhe foi dito. O processo deve ser repetido quantas vezes for necessário e em casos mais complexos pode demandar várias entrevistas do médico com o paciente, até que o mesmo tenha compreendido tudo que lhe foi dito 12.
Antes de suas conclusões, Magno justifica que a informação apenas não é suficiente para subsidiar a compreensão do paciente sobre os riscos, sendo necessário o esclarecimento. No entanto, ainda que se busque nessa interpretação gramatical atribuída um novo conceito de exigência ao consentimento, algumas considerações necessitam ser sopesadas.
Primeiro, muito embora o termo “esclarecido” tenha abrangência mais ampla do que “informado”, o uso de uma ou outra nomenclatura nas regras estabelecidas não irá impor menor ou maior obrigação ao médico; aliás, este é o espírito das normas principiológicas que orientam a bioética, o que reafirma a grande vantagem em se eleger princípios ao invés de regras. Portanto, ainda que a regra contenha que o consentimento precede de informação e não de esclarecimento, uma interpretação teleológica fundada nos princípios bioéticos só pode conduzir à conclusão de que o médico sempre deverá estabelecer um diálogo claro e suficiente e respeitar a autonomia do paciente, sob pena de infringir preceitos humanos caros e responder a falta ética cometida.
Paralelamente, exigir a informação ou esclarecimento do médico também não é impor o que parte da doutrina tem denominado ditadura da autonomia e da vontade do paciente, que não é realmente o que se pretende com a exigência do respeito aos princípios bioéticos consagrados. O profissional médico é − sem dúvida − quem detém o conhecimento técnico necessário para proporcionar o bem ao paciente. É também capacitado para avaliar sua conduta dentro dos preceitos éticos, o respeito à autonomiae a prestação de informações ao paciente para conseguir seu consentimento ao tratamento, o que não retira papel ativo e fundamental no exercício da profissão. O que se pretende com o consentimento informado ou esclarecido é a integração médico-paciente na busca do melhor resultado, conforme preleciona Berstein, concluindo que aceptar la autonomia del paciente (respetar la capacidade de las personas para la toma de decisiones, desacreditando parcialmente el partenalismo médico) logra que el paciente pase de ser receptor del tratamiento, para erigirse em sócio del plan terapêutico 13.
Ademais, as informações ou esclarecimentos a serem prestados ao paciente deverão passar por um âmbito de discricionariedade do médico; não se exige que o paciente tenha compreensão dos aspectos técnicos, mas sim dos riscos que eles implicam e benefícios buscados com o tratamento, de forma a poder preparar-se e até colaborar para seu êxito. Nesse diapasão, aduz Marín, em artigo acerca do alcance e extensão do consentimento informado: la facultad discrecional que tiene el profesional de la salud para graduar el contenido de la información y su forma es uno de los aspectos que presenta mayor sutileza fáctica y jurídica, si decimos que esta obligado a informar absolutamente todo o que directa o indirectamente tenga que ver con el usuario del servicio, en protección de la autonomía del paciente, ello de por sí constituiría un imposible fáctico y por ende jurídico (a lo imposible nadie está obligado). Y estaríamos cayendo en lo que se ha dado en llamar la dictadura de la autonomía de la voluntad del paciente 14.
Assim, o médico avaliará o resultado prático das informações a serem repassadas ao paciente buscando sempre respeitar-lhe a autonomia como ser humano portador de dignidade, somente não lhe prestando algumas informações em casos excepcionais previstos pela legislação, como nos casos de urgência, nos quais não é possível a informação ao paciente ou familiares − o primeiro, por estado de inconsciência ou perturbação ante o risco iminente de vida; os demais, pela falta de tempo ante a gravidade e urgência no atuar médico.
A propósito, o Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina já teve oportunidade de se manifestar acerca destas situações, considerando em recurso em sindicância a inexistência de indícios de infração ética. Segundo entende o CFM, não comete infração ética o médico que, em situação de urgência e em condições psicológicas desfavoráveis, deixa excepcionalmente de solicitar o consentimento informado, visando o beneficio do paciente, embora os princípios bioéticos estejam cada vez mais restringindo estas exceções 15.
Portanto, mantém, o médico, certa independência discricionária acerca do cumprimento de sua obrigação de informar o paciente, quando presentes elementos que justifiquem a mitigação desse dever, em casos excepcionais. Numa interpretação teleológica tendo como fundamento o princípio da autonomia, exista ou não a regra que imponha a informação ou o esclarecimento para a obtenção do consentimento do paciente ao tratamento, o médico deverá sempre pautar sua atividade profissional inspirado nas normas principiológicas que irradiam a bioética para travar com o paciente um relacionamento estreito e de confiança, transmitindo-lhe o máximo de informações claras sobre seu quadro de saúde, exames necessários, conseqüências, tratamentos possíveis e resultados esperados, para que possa eleger qual conduta é mais condizente com seu projeto de vida.
Ressalte-se, ainda, que a morte é o desencadeamento natural de todo processo vital, sendo compreendida pelos indivíduos de diferentes formas conforme suas convicções religiosas, filosóficas e sociais. Portanto, não se deve a todo custo combater esse processo que tem por fim a morte, pois o seu retardamento muitas vezes implica efeitos indesejáveis que causam muito mais prejuízos físicos e psicológicos ao indivíduo, suprimindo-lhe ou retirando a própria dignidade.
Consentimento educado
Essa vertente é defendida no modelo médico comunitário praticado em Cuba como função do médico em não apenas informar e tratar conforme o consentimento do paciente, mas informá-lo o necessário para educá-lo a transformar alguns padrões de comportamento e, assim, evitar complicações ou desdobramentos da doença, deixando de ser objeto de tratamento para ser sujeito de tratamento. Pondera ainda a imperatividade de ampla informação e esclarecimento ao paciente em respeito cego ao princípio da autonomia, pois ainda que tenha o direito de receber informações sobre seu próprio estado de saúde e os aspectos dos tratamentos, essa obrigatoriedade deve sofrer certa mitigação nos casos de enfermidade de longa duração, que possa desencadear crises psicossomáticas.
Ressalte-se que essas circunstâncias são exceções e devem ser plenamente justificáveis, mantendo-se a norma geral de informação que pode trazer grandes benefícios ao tratamento, mormente se o paciente adotar uma postura de educação do seu comportamento orientado pelo médico, evitando complicações de várias naturezas durante o processo de combate à doença.
O educar que qualifica o consentimento é exatamente a prestação de informação necessária à compreensão do paciente, dos tratamentos e suas várias etapas, adotando o médico uma postura ativa em discutir os comportamentos sociais cotidianos daquele, de modo a esclarecê-lo acerca da necessidade de se abster de certas condutas, como, por exemplo, o consumo de bebidas alcoólicas, o tabagismo, a alimentação não-saudável, o exercício físico em demasia ou desorientado, a excessiva vida noturna, dentre outros aspectos comportamentais que influirão no sucesso ou insucesso do tratamento eleito pelo paciente.
Esse atuar médico ativo não implica supressão de informação, nem de interferências indesejáveis na autonomia do paciente. Ao contrário, privilegia a ampla informação e esclarecimento como instrumentos de educação do comportamento do paciente para a obtenção de melhores resultados no tratamento por ele escolhido livremente.
A respeito conclui Porro, em artigo publicado na Revista Cubana de Saúde Pública (on-line): se insiste ahora en declarar que el uso adecuado del consentimiento informado es un avance importante en la practica médica, se pudiera mantener ese nombre despojándolo de la regla que impide al médico realizar su trabajo como educador y guía de la salud, pero como en realidad se preconiza otra forma de actuar preferimos llamarlo consentimiento educado 4.
É claro que a ativa atuação do médico frente ao paciente, no intuito de educar-lhe o comportamento, implica intervir nos valores e motivações do mesmo, aspectos íntimos, o que não necessariamente importa em qualquer coação capaz de ofender a autodeterminação de sua vida.
Em se tratando de saúde e vida das pessoas, bens inalienáveis, não cabe discutir regras absolutas que tolhem a atuação profissional do médico e até da sociedade enquanto organizada em um Estado que assume responsabilidades em nome de todos. Daí que o princípio da autonomia assegura ao indivíduo a participação ativa em tudo o que lhe diz respeito, especialmente sua vida e saúde. Em paralelo, a utilização desse princípio não impõe esvaziamento da responsabilidade social inerente à atividade médica, ou seja, a exclusão total da participação do médico nos processos de escolha pelo paciente. Tal situação não é desejável e não traz os benefícios esperados por todos ao eleger princípios basilares que assegurem a liberdade e exercício pleno de direitos.
No contexto do consentimento educado, nos moldes que a doutrina médica cubana tem proposto, a relação médico-paciente assumiria contornos deliberativos, assegurando-se a decisão final ao paciente em respeito à sua autonomia. Tal modelo de relação baseada no consentimento educado se estabelece sem alijar o médico da participação ativa, como afirma o médico cubano Porro: el médico debe ser un abogado de las acciones preventivas, curativas y de rehabilitación de sus pacientes y un educador que lucha para que en la jerarquía de valores y en la escala de motivos de sus enfermos, estas acciones ocupen un alto lugar jerárquico en el momento de la toma de decisiones por ellos. En esta relación deliberativa debe lucharse para que sea el paciente el que oferte los sacrificios que está dispuesto a hacer en cuanto a cambios de hábitos y costumbres dañinas para la salud. En la búsqueda de un estilo de vida más saludable, el médico debe tener paciencia y comprender que ir dejando que el paciente logre un pequeño cambio tras otro puede conducirlo a la meta deseada. Los obstáculos que conducen al paciente a decisiones autonómicas no deseadas pueden ser externos o internos, entre estos últimos, el miedo no controlado y en ocasiones irracional a las acciones médicas es un problema frecuente que exige de la participación del equipo de salud en la ayuda del paciente. No parece ético decirle al paciente: la decisión es tuya cuando estés listo vuelve a verme 4.
Essa é a interatividade médico-paciente desejada, onde haja mútuo respeito, do médico para com a autonomia do paciente e do paciente para com o conhecimento e compromisso ético do médico em promover o bem-estar. Portanto, informar, esclarecer e educar parecem condutas concatenadas, voltadas a assegurar um consentimento realmente válido, que represente o verdadeiro sentido do princípio da autonomia responsável. Não é demais reconhecer a presença, nesta vertente, ainda que mitigada, do caráter relacional do modelo hipocrático, tão criticado na contemporaneidade em razão de seu papel paternalista − hoje inaceitável frente aos princípios bioéticos que norteiam a medicina.
Também é necessário reconhecer no pensamento de D’agostino a coerência que permite ou pelo menos propõe a convivência pacífica entre o modelo hipocrático e os princípios bioéticos modernos. Mesmo que, do ponto de vista histórico, seja bem possível que (distorcidas) matrizes hipocráticas estejam na base da sensação de desconforto que vive a medicina atual, é inegável que esse modelo, em seu princípio, não merece absolutamente tais acusações (o que não significa que essas não tenham vínculos objetivos com os fatos), em virtude de se assemelharem mais às acusações que Platão movia ao “médico dos escravos”. Parece-nos razoável o atuar ético de informar e educar o paciente para preservar o relacionamento médico-paciente interativo e ético (hipocrático) e fazer com que a doença seja combatida conforme a sua vontade (respeito à autonomia) e sob um plano de ação compreendido pelo mesmo e formulado pelo médico.
Esse é o atuar médico, como bem ressalta D’agostino: ter a consciência de que só pode ser considerado médico aquele que se refere ao paciente como pessoa, na radical universalidade que esse termo veicula 16 − reconhecendo os deveres éticos de só atuar na medida necessária a proporcionar o bem-estar, reconhecendo os limites de intervenção somente para educar, sem usurpar a autodeterminação da pessoa que trata.
Capacidade para consentir
Importante questão jurídica que envolve o exercício da autonomia pelo paciente refere-se a sua capacidade para consentir, uma vez que o Direito regula várias hipóteses em que a capacidade para determinados atos da vida civil inexiste ou é reduzida por aspectos etários e psicobiológicos.
A capacidade é requisito essencial da validade do consentimento, sem o qual torna-se nulo, não gerando qualquer efeito jurídico ou ético. Ante a disparidade de conceitos adotados para atribuir ou não a capacidade etária nas várias ordens jurídicas das diversas sociedades organizadas em Estados independentes e supremos dentro de sua extensão territorial, essa análise restringe-se a breve estudo do ordenamento jurídico brasileiro, o qual utilizaremos como norte visando verificar a incapacidade para consentir em situações diferentes da etária. Serão discutidos, ainda, alguns aspectos que reduzem ou suprimem a capacidade para consentir, embora implementada a idade necessária ao título de maioridade civil, o que implica significativos aspectos jurídicos para a validade do consentimento.
A capacidade etária para consentir
Um primeiro aspecto a ser considerado para aferir a validade do consentimento do paciente em submeter-se ou não a tratamentos propostos, com todas as suas implicações e complexidades, é a capacidade jurídica adquirida pelo implemento de uma idade mínima, considerada conforme o ordenamento jurídico de cada Estado-nação. Essa capacidade é presumida, ou seja, é uma ficção jurídica somente afastada se demonstrado que a pessoa não possui o discernimento compatível em razão de algum mal físico ou psíquico.
No Brasil, a maioridade civil é estabelecida no Código Civil 17, que atualmente fixa tal condição aos 18 anos. No entanto, considera-se como de incapacidade relativa o período imediatamente anterior a essa idade, sendo, portanto, reconhecida certa capacidade àqueles que ainda não completaram 18 anos, mas já tenham 16 anos, independente do sexo.
A primeira questão em relação à capacidade de consentir refere-se à exigência ou não da absoluta capacidade civil ou se a reconhece aos relativamente capazes nos termos da lei civil, de forma plena ou relativa. Em termos legais, não há no Brasil uma normatividade específica acerca da questão e tal análise legal só é possível se tomarmos normas que, implicitamente, permitam uma interpretação lógica.
A questão do exercício pleno da autonomia deve ser apreciada numa interpretação harmônica entre o Código Civil, que estabelece a regra da presunção da plenitude da capacidade etária, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura o respeito à autonomia 18 tanto da criança quanto do adolescente. Essa autonomia, erigida como respeito à dignidade humana pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, encontra limites na própria capacidade de discernimento, inteligência e grau de maturidade da pessoa, afastando, assim, uma ficção jurídica.
Em razão dessa norma, entendemos ser plenamente aplicável no Direito brasileiro a doutrina norte-americana do menor maduro. A respeito dessa teoria Berstein ensina: la corte de algunos estados han adoptado lo que se denomina la norma, regla o disposición del menor maduro, entendiéndose por tal al mayor de 14 años, con madurez, inteligencia y discernimiento para comprender la naturaleza de su enfermedad y las consecuencia de no realizar o posponer tratamientos. El criterio casi unánime para llegar a esto fue la convicción de que si no se aseguraba el acceso a la confidencialidad, los adolescente simplemente dejarían de buscar consejo o la ayuda médica que ellos desean o necesitan 19. Assim, sempre que o grau de compreensão da criança e do adolescente permitir sua participação na tomada de decisões, deve ser respeitada sua autonomia e, conforme a gravidade do caso e conflito entre as decisões da criança ou adolescente e seus pais ou responsáveis legais, impõe-se que a questão seja discutida judicialmente, assegurando ao máximo a autodeterminação da pessoa humana.
É claro que se não houver tempo para se buscar uma solução no Judiciário, a ética médica impõe aos profissionais envolvidos que prestigiem a decisão que melhor promova a preservação da saúde e vida da criança ou adolescente. Não quer a lei e a sociedade que crianças e adolescentes, ainda em processo de formação enquanto pessoas aptas a responder por seus atos, ajam de forma a suprimir a opinião ou mesmo governo que seus pais ou representantes legais têm sobre si. O que se busca é permitir que todos os envolvidos possam compreender esse complexo processo médico de pesquisa e tratamento dos males físicos e psíquicos. Assim, embora a participação efetiva da criança ou adolescente seja imperativa ante o respeito à sua autonomia, devem os pais ou representantes legais deter a última palavra sobre o consentimento − poder só mitigado em casos especiais.
Esse pensamento que prestigia a capacidade efetiva de a criança ou adolescente participar na tomada de decisões acerca de sua vida tem sido difundido nas principais declarações internacionais que discutem os direitos humanos. Pode-se apontar o Convenio de Asturias de Bioética, celebrado em Oviedo, em 1997, do qual destaca-se o artigo 6, que se refere às pessoas que não têm capacidade para expressar seu consentimento: 1. A reserva de lo dispuesto en los artículos 17 y 20, sólo podrá efectuarse una intervención a una persona que no tenga capacidad para expresar su consentimiento cuando redunde en su beneficio directo; 2. Cuando, según la ley, un menor no tenga capacidad para expresar su consentimiento para una intervención, ésta sólo podrá efectuarse con autorización de su representante, de una autoridad o de una persona o institución designada por la ley. La opinión del menor será tomada en consideración como un factor que será tanto más determinante en función de su edad y su grado de madurez.
Conforme se pode verificar, embora o menor não tenha capacidade para consentir, ainda assim deve ser respeitada sua opinião conforme a idade e grau de maturidade. Outras declarações de importante destaque no cenário internacional contemplam o respeito à autonomia da criança e do adolescente, a exemplo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, da Convenção sobre os Direitos da Criança (adotada pela ONU) e da Declaração de Mônaco: Bioética e os Direitos da Criança. Conforme Magno, essa última trata com especialidade o tema, prescrevendo que as medidas tomadas para assegurar a proteção dos direitos das crianças devem ser adequadas a seu grau de autonomia. A criança deve participar na tomada de decisões relativas tanto a sua saúde quanto a sua educação, de maneira crescente e mais qualificada, à medida que sua autonomia se afirmar. Cabe aos pais aceitar essa necessidade. Quando houver diferença de interesses, o interesse da criança deve, em princípio, prevalecer sobre o do adulto 20.
Por essa análise pode-se concluir que a legislação brasileira está condizente com os preceitos internacionais, devendo estar atento o médico quando confrontar-se com situações que lhe imponham o respeito à autonomia da criança e do adolescente, ainda que aos seus pais ou representantes legais caiba derradeiramente consentir.
Ausência ou redução da capacidade
Embora a pessoa seja civilmente capaz ante o implemento da idade legal exigida, pode ocorrer que problemas em seu desenvolvimento físico ou mental imponham limitações que reduzam ou retirem sua capacidade de autodeterminação. Portanto, em razão de uma realidade fática é afastada a presunção jurídica da maioridade civil. Assim, aqueles que por enfermidade ou deficiência mental não tenham o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil e, ainda, os que mesmo por causa transitória não possam exprimir sua vontade, não estão aptos a consentir. Também os que por razão psíquica ou patológica tenham o discernimento reduzido dependem do consentimento de seus representantes legais, muito embora lhes deva ser respeitada a autonomia conforme o grau de compreensão que possuam.
Não são poucas as vezes em que o conhecimento da existência da doença e a compreensão dos males decorrentes de sua ação no corpo, bem como dos efeitos colaterais do tratamento, conduzem algumas pessoas a um estado transitório de submissão, reduzindo sua capacidade de atuar racionalmente na tomada de decisões necessárias a seu bem-estar. Essas hipóteses compreendem um estado transitório de redução ou incapacidade para o autogoverno, o que impõe a interferência de uma pessoa responsável e capaz para substituir-lhe no poder de validamente consentir ou não nos tratamentos propostos.
A respeito, as normas estabelecidas pelo Convenio de Asturias de Bioética prescrevem que quando uma pessoa maior de idade, segundo determina a lei, não tenha, como decorrência de disfunção mental, enfermidade ou qualquer outro motivo, capacidade para expressar seu consentimento para uma intervenção, essa não poderá ocorrer sem a autorização de seu representante ou autoridade, quer pessoa ou instituição, designada legalmente para representá-la. De qualquer forma, a pessoa afetada deve intervir na medida do possível no procedimento de autorização, considerando, ainda, que a autorização pode ser retirada, a qualquer momento, no interesse do paciente.
O artigo 7 daquele convênio internacional, referente à proteção das pessoas que sofrem transtornos mentais, acrescenta: la persona que sufra un trastorno mental grave sólo podrá ser sometida, sin su consentimiento, a una intervención que tenga por objeto tratar dicho trastorno, cuando la ausencia de ese tratamiento conlleve el riesgo de ser gravemente perjudicial para su salud y a reserva de las condiciones de protección previstas por la ley, que comprendan los procedimientos de supervisión y control, así como los de recurso.
O respeito à autonomia das pessoas que por alguma razão tenham sua capacidade suprimida ou reduzida deve ser orientado pela máxima da interpretação do princípio da igualdade: tratar os iguais com igualdade e os desiguais na medida da sua desigualdade. Portanto, a igualdade impõe o respeito à vontade de todos quanto às decisões que importem em sua autonomia, mitigando essa autodeterminação na medida em que aspectos psíquicos e físicos imponham limitações ao seu exercício pleno.
Considerações finais
A bioética é importante conjunto de princípios que orientam uma nova postura médica frente aos direitos humanos conquistados a partir das revoluções ocorridas em todo o mundo. Dentre esses princípios destaca-se o da autonomia como respeito à própria dignidade da pessoa que tem o direito à autodeterminação conforme um projeto de vida construído e que se renova a cada momento, de acordo com as decisões que devem ser tomadas frente às realidades da vida. Desse modo, exige-se do médico uma postura positiva em relação ao paciente, informando-lhe, esclarecendo e até mesmo educando seu comportamento para que compreenda todos os aspectos necessários não só à detecção das doenças através de complexos exames, como também dos possíveis tratamentos oferecidos ante os modernos recursos disponíveis.
Por sua vez, ao paciente é assegurada a autonomia para consentir ou não no atuar médico sobre seu corpo e mente, a partir da compreensão livre e racional de todos os aspectos inerentes em submeter-se ou não ao tratamento, sendo certo que o fim dos princípios bioéticos é a integração médico-paciente em prol de melhores resultados e qualidade de vida, não implicando, portanto, na desconsideração da responsabilidade pela vida que envolve o atuar médico.
Por fim, para que o paciente possa consentir validamente exige-se não apenas a informação, mas também o esclarecimento livre de qualquer coação ou ingerência indesejável. Ademais deve ele reunir certos atributos psíquicos, físicos e legais para fazê-lo. Caso não possa validamente expressar-se por ausência ou redução de qualquer dos requisitos, ainda assim é importante respeitar ao máximo sua autonomia na medida de sua capacidade de compreender as informações e esclarecimentos transmitidos − e os reflexos, em sua vida, das decisões a serem tomadas.
Resumen
Aspectos jurídicos y bioéticos del consentimiento informado en la práctica médica
La medicina es una ciencia que tiene como uno de sus aspectos el carácter relacional, lo que tiene promovido duras criticas por el aspecto paternalista fruto de una equivocada interpretación del modelo hipocrático. Esta característica paternalista es incompatible con los fines modernos de la bioética informada por los principios de la beneficencia, no-maleficencia, autonomía y justicia. En los Estados modernos la dignidad humana fue erigida como principio fundamental, imponiendo respecto a la autodeterminación del individuo actúa conforme un proyecto personal de vida informado por cuestiones filosóficas, religiosas y sociales. Así, la bioética busca establecer nuevos parámetros relacionáis entre medico-paciente, prestigiando siempre la autonomía da persona humana, exigiéndose para o actuar medico conductas positivas de información al paciente de todo lo necesario para que este consienta en lo tratamiento que sea más adecuado a su proyecto personal, sien con todo retirar de lo medico su importante papel social.
Palabras-clave: Bioética. Autonomía. Consentimiento informado.
Abstract
Aspects juridical and bioethics of that information consent in the medical exercise
Medical science has, relational character, as one of its aspects; which has provoked harsh critics due to its paternalist aspect, as a consequence of a wrong interpretation of the hypocritical model. This paternalist characteristic is incompatible with modern purposes of bioethics which is informed by the beneficence, non maleficiency, autonomy, and justice principles. In modern states, human dignity has been erected as a fundamental principle, imposed to the personal auto determination which acts according to a life personal project informed by philosophical, religious and social questions. Though Bioethics intends to establish new parameters in the physician-patient relationship, always, giving primacy to human person autonomy principle, which requires that physician, provides to the patient all the information needed so he or she may consent about the treatment, to adequate it to his personal project, without taking from the medical-doctor its important social role.
Key words: Bioethics. Autonomy. Information consent.
Referências
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7. Convenio de Asturias de Bioética. Convenio sobre los Derechos Humanos y la Biomedicina, Oviedo, 4 de abril de 1997.
8. Unesco. Declaração Universal Sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos, Paris, 1997.
9. Declaração Ibero-Latinoamericana sobre Ética e Genética. Declaração de Manzanillo de 1996, revisada em Buenos Aires em 1998 .
10. Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina, Autos no 3077-055/2001, 1ª Câmara, Relator conselheiro Pedro Pablo Magalhães Chacel, publicado no D.O.U. de 6/11/03, Seção 1, p. 47.
11. Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina, Autos no 2867-053/2004, 1ª Câmara, Relator conselheiro Pedro Pablo Magalhães Chacel, publicado no D.O.U. de 28/7/04, Seção 1, p. 76.
12. Magno HA. A responsabilidade civil do médico diante da autonomia do paciente. Apud Silva Guerra AM (org.) Op. cit. p. 323.
13. Berstein PH, op. cit., p. 85.
14. Marín HA. Alcance y extension del consentimiento informado en la práctica odontológica. Revista Médico Legal on-line. Disponível em: http://www.medicolegal.com.co. Acesso em: 8.5.2007.
15. Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina, Autos no. 6010/2004, Câmara Especial nº 3, Relator conselheiro Elcio Luiz Bonamigo, publicado no D.O.U. de 16/5/2006, Seção 1, p. 78.
16. D’agostino F. Bioética: segundo o enfoque da filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. p. 46.
17. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002.
18. Brasil. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.
19. Berstein PH, op. cit. p. 90.
20. Magno HA, op. cit. p. 328.
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